Deveria abraçar todas as palavras que brotam em mim


Já tive, por vezes, a necessidade absurda da surdez. Pois sim. A necessidade explicável dessa inexplicável vontade de não escutar o que o mundo me diz, apenas porque este mundo nada me fala nem me esclarece.

Uso palavras que não criei, mal sei de onde vieram ou quem as fez, só sei que uso e nem sei qual o real sentido do que foi dito, do que estou dizendo.
E as palavras têm um domínio sobre-humano de todos nós, pois nos deixamos aprisionar por elas nelas, nos rendemos às mentiras e fugimos das verdades. O que eu posso esperar da liberdade que me aprisiona na palavra livre, simplesmente? E depois que se é feliz, o que se faz com a felicidade? Oh, palavras... o que fazer dessa substância amorfa à qual tentamos deliberadamente dar forma e sentido?

E da palavra ‘palavra’, que tão determinada utilizei para dizer que não sei o que estou dizendo, que conheço dessa junção de letras? Parece loucura, mas pensar assim me torna mais próxima da natureza humana e não me faz cair em meros devaneios tolos.

Ora essa, veja só o que eu disse!

O que me torna humana é me aproximar desse abismo de demências que se criam em mim e que, por medo de tornar público, eu escondo nas mais profundas e tempestuosas normalidades do meu eu.

Mas por que o medo de expor o que existe?
Seria feio o que eu fiz de mim ou seriam assustadoras as palavras que eu utilizaria?

É preciso coragem para dizer o que se passa, dizer sem desdizer o que se disse, sem acrescentar depois o seu “não era isso o que eu quis dizer”.
Hipocrisia é a palavra!
E para ser hipócrita é necessária uma boa dose de desconhecimento e covardia, porque as palavras têm o poder que queremos dar a elas e não podemos dar a nós mesmos por temer o que mais tarde faríamos do nosso poderoso controle do mundo. E talvez seja por isso que tudo seja mistério nessa vida, porque é apaixonante esse drama que inventamos para que a maior experiência divina faça sentido.
Que besteira tudo isso!
Mas se pararmos para analisar melhor, pelo menos por um instante, as nossas verbalizações nos encarceram. Não que seja culpa do verbo, a responsabilidade é de quem verbaliza, acrescento.

É indolor dizer, mas é dolente até mesmo a palavra culpa. Gritamos, brigamos, falamos mal porque as palavras machucam. Cantamos, rezamos ou nos desculpamos porque as palavras são curativas, são poderosas.
Quero propor a você, que se encorajou a ler até aqui, a se perguntar: Como seria viver sem palavras? Teria o mundo um sentido, será que existiriam nomes, rótulos, importância ou tudo estaria tão-somente existindo do que for sendo, sem definição, sem intérprete... ?

Porque eu digo, com um prazer indizível, que eu perdi o medo do feio, das palavras, da loucura, de todo o sentido que a vida poderia ter. E isso é tão doce. Agora eu posso fazer do mesmo modo que Drummond tão prontamente declarou e também provocar: “Palavras, palavras (digo exasperado), se desafias aceito o combate!”.
E agora que estou livre não sei o que fazer dessa minha liberdade. Uma liberdade que sufoca, que aprisiona, escraviza não pode ser o botão que me desprende. E é inútil nomear que o nome disso é insatisfação porque não me torna mais satisfeita ou mais livre, unicamente, volto às prisioneiras palavras das quais acreditei perder o amargo vínculo.

É ilusório tudo isso.

Acreditei com tanto ardor na minha capacidade de ir contra aquilo que me faz que me desfiz de mim. É perigoso lutar contra o que nos constrói, por mais corajoso que se seja, uma vez que se precisa usar a força do que lhe domina contra ela mesma. E a má notícia é que o que lhe controla geralmente é de uma fraqueza tão aguda que sucumbe à força fraca que o faz pensar que seria fácil vencê-la. Então ocorre que você se cansa de lutar contra a tola debilidade que o faz prisioneiro.

E, na maioria das vezes mesmo que eu não queira aceitar essa outra verdade, essa é melhor decisão que se poderia tomar. É quando a sensatez prevalece, o conformismo impera e o verdadeiro alvedrio te invade e sobressai à sua miséria humana de abstinência total de poder e termina por vencer as forças que te subjugam e o tornam impotente frente às suas aspirações. E você se deslumbra novamente, acreditando ter vencido essa luta injusta.

Comentários

  1. Isso me lembra um antigo trabalho que fiz sobre filosofia da linguagem. E me lembra também tão sintético e tão abrangente Mario Quintana, que sonhava com um mundo onde não existissem substantivos, mas apenas adjetivos, como expressa em um de seus poemas:

    DE GRAMÁTICA E DE LINGUAGEM

    "E havia uma gramática que dizia assim:
    "Substantivo (concreto) é tudo quanto indica
    Pessoa, animal ou cousa: João, sabiá, caneta".
    Eu gosto das cousas.
    As cousas sim!...
    As pessoas atrapalham.
    Estão em toda parte.
    Multiplicam-se em excesso.

    As cousas são quietas. Bastam-se.
    Não se metem com ninguém.
    Uma pedra. Um armário. Um ovo, nem sempre,
    (Ovo pode estar choco: é inquietante...)
    As cousas vivem metidas com as suas cousas.
    E não exigem nada.
    Apenas que não as tirem do lugar onde estão.
    E João pode neste mesmo instante vir bater à nossa porta.
    Para quê? Não importa: João vem!
    E há de estar triste ou alegre, reticente ou falastrão,
    Amigo ou adverso...João só será definitivo
    Quando esticar a canela. Morre, João...
    Mas o bom mesmo, são os adjetivos,
    Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto.
    Verde. Macio. Áspero. Rente. Escuro. Luminoso.
    Sonoro. Lento. Eu sonho
    Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
    Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais.
    Ainda mais:
    Eu sonho com um poema
    Cujas palavras sumarentas escorram
    Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
    Um poema que te mate de amor
    Antes mesmo que tu saibas o misterioso sentido:
    Basta provares o seu gosto... "

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  2. "A necessidade explicável dessa inexplicável vontade de não escutar o que o mundo me diz, apenas porque este mundo nada me fala nem me esclarece."
    Mas me sinto impelido a não concordar com isso, o mundo nos diz muitas coisas a todo o tempo, mas não aprendemos a ouví-lo, ou interpretá-lo, talvez por estarmos muito presos a estas palavras tão lacradas e vazias de significado....

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    1. rsrs', agora que você realçou isso, me sinto impelida a admitir que eu radicalizei... ops! Ai ai, fui pega pelas palavras de novo.

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